Há anos vivenciando o mercado automobilístico brasileiro, observarmos padrões de mercado, impactos de programas de governo para a indústria buscar escala na venda de veículos novos. Estamos novamente neste momento com o anúncio de medidas pelo governo federal.

Historicamente, governos promovem mecanismos para gerar mais vendas e, consequentemente, mais produção local de veículos. Nas últimas duas décadas, vivenciamos várias bolhas de vendas e investimentos motivadas por esses programas governamentais ou por condições favoráveis de financiamento  de produtos que, em determinados momentos, cabiam no bolso do consumidor.

O famoso carro popular “pé de boi” foi um desses programas que trouxe o sonho da mobilidade com veículo zero para as classes D e E e para os novos entrantes da classe C, público que visava prestações de longo prazo. Valor do veículo e seu conteúdo tecnológico eram secundários, importante era conseguir pagar a mensalidade.

Apesar deste modelo ter criado uma bolha interessante nas vendas, quando o mercado atingiu os 3,6 milhões de veículos de passeio em 2013, logo se mostrou não sustentável. A economia do País, por vários fatores, não o acompanhou com crescimento e geração de empregos.

Para a indústria, esse programa se tornou um pesadelo, pois se criou capacidade produtiva em segmento de veículos que nunca mais seria ocupada e que justificasse o alto investimento feito.

Entretanto, as tendências tecnológicas, a transformação digital, as políticas de meio ambiente e segurança, como Proconve e Rota 2030, trouxeram novos investimentos em conteúdo tecnológico e modernidade das fábricas, colocando o produto automóvel e o parque tecnológico brasileiros em padrões globais.

Sem dúvida, os veículos produzidos e vendidos no Brasil hoje são completamente diferentes que os de 2013. Têm mais conteúdo tecnológico, conectividade, segurança, conforto etc. E, é óbvio, os preços subiram.

O ticket médio hoje está na faixa de R$ 145 mil contra R$ 70 mil em 2015, descontando a inflação do período. Coincidentemente, em um mercado de veículos de passeio e comerciais leves semelhante, em torno de 1, 96 milhão de unidades.

Isso mostra um novo padrão de mercado que se estabiliza no poder atual de compra do consumidor, gerando mais elasticidade de preço para indústria, apesar de não existir efeito escala.

Dos 2 milhões de veículos de passeio e comerciais leves vendidos em 2022, 50% foram para frotistas e locadoras, ou seja, para a mobilidade compartilhada, utilizada principalmente pelas classes C, D e E.

Os outros 50%  foram vendidos para as classes A e B, que querem veículos avançados e nos quais o preço não parece ser o primeiro fator de compra. Veículos modernos com conectividade, segurança assistida, tecnologia de propulsão de última geração atraem esse tipo de consumidor.

O mercado atual brasileiro automobilístico nunca esteve tão correlacionado ao PIB. Sem uma economia com crescimento de no mínimo 5% ao ano não há geração de poder de compra que possa mudar esse padrão de 2 milhões de veículos.

Esforços fiscais não parecem, na atual conjuntura política, resolver essa estagnação. Podem gerar mais um respiro de sobrevivência da indústria, até chegar novamente à realidade do mercado. O famoso voo da galinha….

Enquanto a indústria de carros novos convive agonizante com a falta de perspectiva de maiores volumes, o mercado de usados supre a classe média com preços altos e cerca de 10 milhões de unidade anuais.

A bola da vez da indústria é sem dúvida a reposição. O risco do desemprego, a falta de perspectiva econômica de crescimento e geração de emprego impulsionam as vendas, já que a manutenção ainda cabe no bolso da classe média.

Falar de carro popular ou carro verde para a descarbonização hoje é exatamente focar o mercado de veículos usados. Mais de 90% dessa frota são veículos flex, ou seja, podem ser abastecidos com etanol, combustível verde que mais contribui para a redução de CO2.

Um programa que prestigia esse mercado com regras que reduzam os custos de transação, financiamento, manutenção e os custostambém do próprio etanol para o consumidor, com certeza fará com que as classes D e E voltem-se para a mobilidade individual, garantindo assim veículos seguros e ambientalmente corretos.

Combinando com uma política de renovação da frota de usados bem estruturada, os usados poderiam pressionar o mercado de novos, gerando assim demanda maior e sustentável, impulsionada ainda por leve crescimento do PIB e pela estabilidade de emprego.

No momento , “carro popular” parece ser mesmo o carro usado.

*Besaliel Soares Botelh é  empresário, consultor e ex-presidente da Robert Bosch na América Latina


 

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