Cunhada em 1958 pelo jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, a expressão complexo de vira-latas ilustra a inferioridade que os brasileiros enxergam em si próprios, como cães sem raça definida e sem valor monetário que vagam à cata de comida virando latas de lixo.

O tal complexo aparece em várias áreas do cenário nacional, do futebol – que inicialmente inspirou a teoria rodriguiana com a derrota humilhante da Copa de 1950 – aos avanços tecnológicos desenvolvidos aqui.

Uma das vítimas do complexo de vira-latas é o etanol brasileiro, sua evolução no sistema flex bicombustível etanol-gasolina e o avanço para o powertrain híbrido flex, combinado com a propulsão elétrica.

São todas criações brasileiras que colocam o País à frente do resto do mundo em velocidade e eficiência para reduzir e descarbonizar as emissões de gases de efeito estufa dos veículos, mas o viralatismo nacional muitas vezes classifica estas soluções como atraso ou fracasso.

Muito ao contrário, não faltam evidências que o uso de biocombustíveis, puros ou aliados à eletrificação, é a mais eficiente e rápida das soluções conhecidas para descarbonizar as emissões dos meios de transporte, especialmente quando se considera o ciclo de vida completo da produção, distribuição e uso dos combustíveis, dos veículos e, quando é o caso, de suas baterias de propulsão.

Política pública necessária

Nesse sentido, já passa da hora de o Brasil reconhecer sua vantagem bioenergética e incentivar suas próprias soluções para descarbonizar emissões.

O País precisa estabelecer com urgência políticas públicas não só para reduzir o custo de veículos de baixa emissão, inclusive adotando isenções para modelos a etanol puro, híbridos ou não, mas também é fundamental tornar o preço do etanol competitivo na bomba de abastecimento. Este é o estímulo que falta.

Calcula-se que dos 34,9 milhões de veículos flex em circulação no País somente 30% rodam com etanol hidratado puro, o E100, porque o preço do biocombustível é desvantajoso em relação à gasolina na maior parte do território nacional. Mesmo assim esta porção equivale a 10,5 milhões de carros que neutralizam cerca de 90% das emissões de CO2, reabsorvidas nas próprias plantações de cana.

Graças ao domínio de quarenta anos na produção de etanol combustível e de vinte anos da tecnologia flex, mesmo sem incentivos e subutilização do biocombustível, o Brasil já tem maior frota de baixo carbono do mundo, volume que sob o prisma do viralatismo alguns chamam de fracasso.

Visto pelo prisma de solução que ninguém mais tem disponível à mão no mundo, faria enorme e imediata diferença a redução do preço do etanol para o Brasil quase zerar emissões de carbono da frota de veículos leves.

Evidências

Não faltam estudos e pesquisas que apontam a eficiência descarbonizante do biocombustível brasileiro, que se torna ainda mais efetiva quando combinada com eletrificação em modelos híbridos flex.

No início deste ano a Stellantis conduziu ensaios com um Jeep Renegade com motor 1.3 turboflex. Abastecido com etanol, E100, e equipado com um simulador da Bosch, o carro percorreu mais de 240 quilômetros nas pistas de testes da planta de Betim, MG, para medir sua emissão de CO2 no conceito poço à roda, considerando a produção, distribuição e uso do combustível.

O resultado foi a emissão de 25,79 kg de CO2 nos 240 quilômetros percorridos com E100, menos da metade dos 60,64 kg emitidos com uso da gasolina brasileira E27, misturada com 27% de etanol.

O Renegade com E100 também emitiu menos do que os 30,41 kg de CO2 que seriam colocados na atmosfera por um carro 100% elétrico que usa energia gerada pela matriz europeia, mas um BEV, Battery Electric Car, emite menos, 21,45 kg de CO2, quando é alimentado pela eletricidade gerada no Brasil, cerca de 80% proveniente de fontes renováveis e neutras em carbono.

Segundo cálculos da Unica, União da Indústria da Cana, considerando o ciclo completo do poço à roda – inclui o plantio e colheita da cana, seu processamento, transporte e distribuição, além do uso nos carros –, um veículo alimentado exclusivamente com E100 brasileiro emite apenas 37 gramas de CO2 por quilômetro, valor menor do que os 54 gCO2/km de um modelo a elétrico a bateria com a matriz europeia, e quase igual aos 35 gCO2/km de um BEV alimentado pela energia mais limpa gerada no Brasil.

Especialistas apontam que a combinação do biocombustível com a eletrificação é a solução mais eficiente. Um modelo híbrido flex, como o Toyota Corolla já produzido no país desde 2019, apresenta a melhor relação de eficiência: abastecido só com etanol tem emissão de 29 gCO2/km.

Esta vantagem é ainda mais ampliada quando se leva em conta o ciclo de vida do veículo, seu combustível e sua bateria. Um recente artigo científico, já antecipado por esta coluna, elaborado por pesquisadores da Unicamp identifica o tamanho desta vantagem (veja aqui https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0973082623001102?dgcid=author).

Segundo este estudo, em 160 mil quilômetros de utilização, um veículo elétrico, recarregado com energia gerada no Brasil, deixa para trás pegada de carbono equivalente a 16,7 toneladas de CO2 emitidos ao longo do ciclo, sendo que a maior parte desta emissão vem do berço, originada na fabricação do produto, com 6 toneladas de CO2, e de suas baterias, com 5,8 t/CO2.

Já um híbrido fechado, recarregado só pelo motor a combustão – tecnologia que viralatistas chamam de ultrapassada –, abastecido com E100 emite 12,4 t/CO2 em 160 mil quilômetros, e emitiria ainda menos, 9,5 t/CO2 se usasse gás biometano – outro biocombustível em pleno crescimento no Brasil.

Já a Toyota faz outra conta que ilustra a eficiência do biocombustível aliado à eletrificação: uma bateria utilizada em um carro elétrico equivale a 53 baterias de um Corolla híbrido flex, ou a seis de um híbrido plug-in. Isto significa que 53 Corolla eletrificados abastecidos com E100 evitam a emissão de 1.590 gramas de CO2 por quilômetro rodado, volume dezessete vezes maior do que os 90 gramas evitados por um único BEV cuja capacidade da bateria equivale a de 53 híbridos.

Meio ou fim do caminho?

A partir destas várias medições e constatações já há quem defenda que o veículo híbrido fechado com motor a etanol não é um caminho intermediário para a eletrificação total, mas sim o fim desta rota, o topo da montanha.

Professor e chefe do laboratório de genômica e bioenergia da Unicamp, Gonçalo Pereira é uma das vozes que tentam transformar o complexo de vira-latas em inteligência competitiva, inclusive lembrando que um vira-lata também é uma espécie híbrida: “No quesito inteligência o que pode ser mais esperto do que um vira-lata amarelo?”

Ao comparar a hibridização dos veículos com a agropecuária, em que espécies híbridas são melhores, mais resistentes e produtivas, o professor Gonçalo faz a seguinte ponderação: “Ouvimos o tempo todo que os híbridos seriam uma alternativa de transição até o BEV, sem perceber que os híbridos são o ponto final, o ponto ideal, o máximo que poderemos alcançar. É exatamente isso que ocorre na agropecuária, por exemplo, em que a produção de alimentos que permite a nossa sobrevivência é feita a partir de híbridos”.

Em que pese o fato de veículos elétricos a bateria, no momento, serem a melhor solução disponível para descarbonizar as emissões de veículos em países da Europa, China e Estados Unidos, existem evidências de que a combinação de eletrificação com biocombustíveis tem enorme potencial de contribuição para conter o aquecimento global – e neste cenário o Brasil tem a vantagem de ser um rodriguiano país híbrido de vira-latas.

* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.


Foto: Divulgação/Unica

Pedro Kutney
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